Em Breve!
Natureza | 03/06/2014

O dia em que chorei por um rio invisível

Gosto de sentir que a natureza mora dentro de mim. Na verdade, é um pouco mais do que isso: a natureza do lugar onde vivo mora dentro em mim. No meu corpo circula o ar das montanhas e do vale que vejo da janela – e que sinto na minha pele quando cuido do meu jardim ou caminho pela ecovila. O alimento desta terra me nutre, assim como a água da nascente que chega à minha casa completamente pura, e percorre, a cada gole, todo o meu organismo. Pelas minhas veias – quem diria – corre o sangue e a força de um lugar que já foi floresta virgem, virou pasto degradado e hoje se recupera com árvores, pássaros e esperança, de novo.

São essas moléculas de natureza que vivem conversando comigo e me alimentando diariamente. Nosso corpo não é, em sua maior parte, composto por água? Então, o meu, hoje, guarda parte da água que vejo brotar da terra, bem perto da minha casa. Não é à toa que a relação que estabeleço com o lugar é tão estreita e intensa! Quando viajo, sempre levo no carro uma garrafa térmica com 5 litros de água, não apenas para evitar a compra de garrafinhas plásticas pelo caminho – e, assim, apoiar grandes empresas que geram uma lista quilométrica de impactos socioambientais – mas também para manter fina a conexão com o lugar onde vivo.

No último sábado, tive o prazer de participar da Expedição Planeta no Parque Rios e Ruas, que fez parte da programação do Planeta no Parque 2014, em São Paulo (e mostrou um pouco da razão de ser da iniciativa Rios e Ruas, criada pela dupla Luiz de Campos Júnior, geógrafo, e José Bueno, arquiteto).

Saí da ecovila bem cedo, carregando minha água querida (ok, pode rir, se quiser) e meus pensamentos sobre essa história dos rios invisíveis, soterrados vivos ao longo das últimas décadas pela fúria da expansão urbana a qualquer preço. Só na capital são mais de 300 rios tamponados pelo asfalto (este é o nome ‘técnico’ – e bastante impessoal – que se dá para essa miopia construída).

A ideia da caminhada era percorrer um trecho do Riacho das Corujas, desde sua nascente, na lateral de uma escadaria que quase ninguém vê, passando por bocas de lobo, galerias subterrâneas, uma praça linda pela qual ele corre a céu aberto (e ainda oferece água limpa para uma horta comunitária que é pura revolução gentil) até o parque linear que leva o nome do rio – para depois ser novamente soterrado pelo asfalto das ruas e, mesmo assim, seguir seu fluxo.

Eu sabia ou sentia que algo me surpreenderia pelo caminho. Logo no início do passeio, foi inevitável imaginar a relação do paulistano com as águas da cidade, e pensar sobre a fragilidade daquela natureza que tenta, muitas vezes sem sucesso, penetrar em cada morador da metrópole. Agora, em plena crise hídrica, escassez e abundância se encontram e se separam no mesmo palco, em um jogo de poderes, egos e equívocos. Que natureza é essa que corre (será?) nas veias da população? Como penetrar em solo tão impermeabilizado? Como esses rios podem tocar as pessoas se estão soterrados e, mais que isso, invisíveis aos olhares que só têm atenção – e tempo – para os carros e os smartphones?

Para mim, que agradeço todo dia pela água que bebo e uso para tantas e tantas atividades, foi um impacto tremendo receber nas mãos a água da nascente do Corujas. Para ser honesta, foi um susto. Depois do convite feito pelo José Bueno aos participantes, fui até o fio de água que brotava da terra e escorria para uma boca de lobo, dali a dois metros. Talvez pelo contato mais íntimo que mantenho com o mundo natural, no exato momento em que coloquei minhas mãos naquela água, senti no peito uma tristeza profunda e, sem que eu pudesse conter a emoção, chorei com o rio.

Naquele instante, senti a força da natureza contida, renegada, mas forte o bastante para me tocar profundamente. Foi como se o rio estivesse pedindo socorro, gritando pelo direito de simplesmente ser. Ali, naquele pedacinho de São Paulo, pude notar o ar mais frio, o cheiro de terra úmida, a vegetação (sobrevivente) típica dos lugares encantados escolhidos pela água para brotar e iniciar sua longa jornada: bambus, taiobas (cortadas recentemente) e árvores nativas de uma mata ciliar que ainda resiste.

São Paulo soterrou boa parte de sua natureza, acreditando no discurso ultrapassado de dominação da natureza e apologia da técnica e das tecnologias. Mas, pelo menos no que diz respeito aos rios, ainda existe vida pulsando sob o asfalto, com potencial de voltar a ser o que nasceu para ser: rios, e não ruas.

É possível mudar isso tudo? Transformar a cidade, mudar paisagens, subverter ordens? Sim. Mas é preciso querer. É preciso, antes de qualquer coisa, voltar a enxergar os rios, percebê-los, notá-los minimamente – daí a importância do trabalho desse pessoal do Projeto Rios e Ruas. Vinda de um cano de PVC e vista (quando muito) de longe, não sabemos mais se a água é de chuva, esgoto ou nascente. Não sabemos nem se podemos beber a água da nascente (descobri naquele dia que, infelizmente, em São Paulo isso não é possível, porque o solo está contaminado em quase toda a cidade, por esgoto, lixo, produtos químicos e combustíveis fósseis).

Não sei se temos força para mudar isso tudo. Sei que condições nós temos, mas ainda falta vontade e ação. Mesmo assim, foi muito bom perceber que naquele grupo de pessoas que caminhava em relativo silêncio, havia disposição para voltar a enxergar aquele rio. Foi curioso, aliás, notar que, depois da redescoberta do rio, muita gente abriu os olhos também para as árvores e as flores no caminho. Vi pessoas fotografando patas de vaca, paus-ferro, figueiras asiáticas. Ao menos naquele instante, a natureza voltava a ter vida para aqueles habitantes da cidade.

Foto: Você sabe me dizer se essa água é de chuva, esgoto ou nascente? Vendo assim, meio acinzentada, saindo de um cano sem qualquer poesia, é difícil imaginar que essa água acabou de brotar da terra… Uma pena que não seja boa para beber, por conta das tantas contaminações que o solo de São Paulo já sofreu, mas, ainda assim, é importante perceber que essa água pode ter destinos mais nobres do que se misturar ao esgoto ou passar boa parte da vida correndo por galerias sob ruas e avenidas. Áreas de lazer como o Parque Linear das Corujas (onde tirei esta foto) ajudam as pessoas a redescobrir o que talvez seja o elemento crucial nessa história: afeto pela água que nasce nas nossas cidades e que, de uma forma ou de outra, ainda mora dentro de cada um de nós.

Texto por: GIULIANA CAPELLO

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